Por Édipo H. Cremon
Sem dúvida os modelos digitais de elevação (MDEs) são de extrema importância para uma série de aplicações. A comunidade de geomática/geotecnologias tem feito intenso uso desses produtos.
Um MDE clássico que muitos usuários já devem ter trabalhado é o MDE SRTM (Shuttle Radar Topography Mission), resultado do projeto cooperativo entre a NASA (National Aeronautics and Space Administration), a NIMA (National Imagery and Mapping Agency) e o Departamento de Defesas (DOD) dos Estados Unidos, com a Agência Espacial Alemã (DLR – Deutsches Zentrum für Luft- und Raumfahrt) e italiana (ASI – Agenzia Spazionale Italiana). Os dados altimétricos SRTM foram adquiridos por sobrevoo com o ônibus espacial Shuttle que ocorreu no período de 11 a 22 de fevereiro de 2000 e processados por interferometria de radar de abertura sintética (InSAR) com base na banda C, para obter um MDE, pela NASA-JPL.
Esses dados são distribuídos (https://earthexplorer.usgs.gov/) em coordenadas geográficas com datum horizontal WGS84 e em um primeiro momento foram distribuídos com tamanho de pixel de 3 segundos de arco (~90 m na linha do Equador) e atualmente já disponíveis com 1 segundo de arco (~30 m na linha do Equador) para a América do Sul.
Outras iniciativas de elaboração e disponibilização de MDEs globais surgiram depois da SRTM, tais como o ASTER GDEM, AW3D30 e TanDEM. Todos os MDEs com tamanho de pixel entre 3 e 1 segundo de arco (~90 a ~30m), os quais falaremos mais adiante.
Nos últimos tempos, tem circulado entre a comunidade de geomática/geotecnologias um “novo” MDE que seria oriundo do satélite ALOS e do seu sensor radar PALSAR e teria 12,5m de “resolução espacial”. Esse novo “MDE-PALSAR” está disponível pela ASF (Alaska Satellite Facility) em https://search.asf.alaska.edu/#/.
A possibilidade de um MDE com resolução espacial de 12,5 m gratuito seria incrível, melhorando a escala de análise de várias aplicações, entretanto há um equívoco muito grande em relação a esse “MDE-PALSAR”, principalmente pela pouca descrição que há na página da ASF (https://www.asf.alaska.edu/sar-data/palsar/terrain-corrected-rtc/) e também pela disseminação de notícias sem o devido cuidado técnico. Em um documento mais detalhado da própria ASF é explicado que esse produto nada mais é do que o MDE SRTM reamostrado para 12,5 metros e com a altitude ortométrica dado pelo modelo goidal EGM96 convertida para altitude elipsoidal WGS84 (https://media.asf.alaska.edu/uploads/RTC/rtc_product_guide_v1.2.pdf) para áreas que abrangem a América do Sul.
Ou seja, não é um produto novo. Apenas o MDE SRTM reamostrado para que usuários de imagens do sensor PALSAR (a bordo do satélite ALOS) possam fazer as correções de terreno e ortorretificação das imagens deste sensor de radar de abertura sintética (SAR), já que as imagens PALSAR possuem tamanho de pixel de 12,5 m nos modos de imageamento FBD e PLR. Essa correção do terreno visa amenizar os efeitos de sombreamento, relevo invertido (layover) e encurtamento de rampa (foreshortening) que são inerentes ao imageamento SAR, principalmente em áreas com terreno mais acidentado.
Colocar esse MDE disponível pela ASF como sendo de 12,5 m de resolução espacial é delicado, pois originalmente ele é derivado do SRTM de 1 segundo de arco (~30m). Qualquer um pode reamostrar o dado até pra 1m que não estará melhorando a qualidade dele, lembrando que resolução espacial e tamanho de pixel são conceitos diferentes. Para derivar MDE de imagens SAR há dois mecanismos: por radargrametria ou por InSAR. Infelizmente não foi feito isso. Então não existe um MDE-PALSAR.
O que há de mais novo advindo do satélite ALOS, mas do sensor PRISM (não do PALSAR), é o MDE chamado de AW3D30 com 30m de tamanho de pixel (http://www.eorc.jaxa.jp/ALOS/en/aw3d30/index.htm) derivado de fotogrametria orbital. O sensor PRISM a bordo do ALOS possui uma banda pancromática com capacidade estereoscópica e resolução espacial ao nadir de 2,5m e com ele foi gerado um MDE com 5 m de resolução espacial pela Agência Espacial Japonesa (JAXA), entretanto para seu acesso gratuito a JAXA reamostrou os dados para 1 segundo de arco (~30m). O MDE AW3D30 foi elaborado a partir de imageamentos entre 2006 e 2011. Confira em https://www.eorc.jaxa.jp/ALOS/en/aw3d30/aw3d30v22_product_e.pdf.
Assim como o AW3D30, outro MDE global gratuito oriundo de fotogrametria orbital é seu antecessor ASTER GDEM. A partir das bandas do infravermelho próximo com capacidade esteroscópica e resolução espacial de 15m, foi elaborado um MDE global dos dados ASTER denominado GDEM (Global Digital Elevation Map) de 1 segundo de arco (~30 m). O produto ASTER GDEM teve sua versão 3 recém lançada em agosto de 2019 com refinamento de novos dados para a obtenção de um MDE melhor que nas versões anteriores. O ASTER GDEM é derivado de imageamentos entre o ano de 2000 e 2013.
Outro MDE global é o TanDEM-X 90, esse produto assim como o MDE SRTM é baseado em interferometria SAR mas a bordo de satélites, ao invés de ônibus espacial, e com sensores operando na banda X. A missão SRTM, além da banda C, também operou na banda X e foi gerado pela DLR um MDE SRTM em banda X apenas para algumas faixas do globo terrestre (https://download.geoservice.dlr.de/SRTM_XSAR/) em 1 segundo de arco (~30 m). O dado TanDEM-X global gratuito se tornou acessível a partir de setembro de 2018 e é oriundo de MDE de 0,4 segundos de arco (~12m), dado este não gratuito, e foi reamostrado para 3 segundos de arco (~90 m). Os dados são referentes a imageamentos entre os anos 2011 e 2015.
A seguir há uma relação dos principais MDE globais gratuitos disponíveis até o momento:
Produto | Método | Altitude | Tamanho do pixel | Endereço |
SRTM 1arc v3 | InSAR (banda C) | Ortométrica pelo modelo geoidal EGM96 | 1 segundo de arco (~30 m) | https://bit.ly/2hdsw0W |
ASTER GDEM v3 | Fotogrametria orbital | Ortométrica pelo modelo geoidal EGM96 | 1 segundo de arco (~30 m) | https://go.nasa.gov/2oLQiEm |
ALOS AW3D30 v2.1 | Fotogrametria orbital
produzido com ~5m e reamostrado para ~30m |
Ortométrica pelo modelo geoidal EGM96 | 1 segundo de arco (~30 m) | https://bit.ly/2VDWQUZ |
TanDEM-X 90 | InSAR (banda X) produzido com 0.4 segundos de arco (~12m) e reamostrado para 3 segundos de arco (~90m) |
Elipsoidal WGS84 (realização G1150) | 3 segundos de arco (~90m) | https://bit.ly/328k2NE |
“MDE ALOS PALSAR” | SRTM de 1 segundo de arco reamostrado para 12.5 m | Elipsoidal WGS84 (convertido de altitude ortométrica EGM96 do SRTM) | 12.5m | https://bit.ly/29ou4OJ |
Vamos ver na prática
No caso de TODOS os MDEs mencionados, estamos falando de modelos digitais de superfície, ou seja, a altura do modelo digital considera tudo aquilo que está na superfície terrestre, como vegetação, edificações, etc. Portanto em uma área densamente vegetada, a altura do modelo digital não corresponde à altitude no nível do terreno e sim da copa das árvores.
Sendo assim, fizemos um pequeno teste. Escolhemos uma área com intenso processo de desmatamento entre a Floresta Nacional Jamari e o município de Machadinho D’Oeste no estado de Rondônia. Como estamos falando sobre modelos digitais de superfície é esperado que os MDEs abordados apresentem diferentes estágios de desmatamento na região, já que os produtos usados vão desde o ano de 2000 até 2015.
Um detalhe importante, como temos três MDEs com valores altimétricos ortométricos referenciados ao modelo geoidal EGM96 (SRTM 1arc, ASTER GDEM v3 e ALOS AW3D30 v2.1) e dois MDEs com altitudes elipsoidais referente ao modelo geométrico WGS84 (“MDE PALSAR” e TanDEM 90), é esperado que haja uma diferença entre valores mínimos e máximos de cada MDE. Para minimizar essas diferenças de referencial altimétrico e realçar a visualização, aplicamos a análise de relevo sombreado (altitude=45 e azimute=45) sobre cada MDE.
Com esse tipo de produto é possível realçar as áreas desmatadas nos modelos digitais de superfície e um detalhe que fica nítido aqui é que o MDE SRTM e o “MDE PALSAR 12,5 m” são muito similares. Obviamente já que se tratam do mesmo produto, sendo o último apenas uma reamostragem do primeiro. Como ambos refletem como estava a superfície no ano de 2000, é possível observar um avanço do desmatamento nos produtos seguintes que refletem diferentes estágios de desmatamento ao longo do tempo. Vale ressaltar também que mesmo o ASTER GDEM na sua nova versão 3, comparado com o AW3D30 ainda apresenta artefatos não muito fidedignos com a superfície terrestre. Por fim, o MDE TanDEM 90 por ter sido reamostrado de um produto de 12m e ter o tamanho de pixel mais grosseiro (~90 m), fica evidente sua aparência “borrada” em relação aos demais produtos.
Como análise complementar, extraímos a variável geomorfométrica de declividade (%) dos MDEs selecionados. É esperado que com esse produto as áreas de transição entre floresta e área aberta haja uma diferença altimétrica que seja realçada pela declividade.
Mais uma vez é possível notar a grande semelhança entre o produto SRTM e o chamado “MDE PALSAR 12,5 m”, já que um é resultado da reamostragem do outro. Por sua vez, o ASTER GDEM v3 visualmente ainda se mantem com comportamento atípico para um modelo digital de superfície em áreas de borda de desmatamento de floresta densa quando extraído sua declividade. Enquanto o AW3D30 apresenta nitidamente as bordas entre as áreas de vegetação densa e áreas abertas, representado por maiores declividades. Já o dado do TanDEM 90, mesmo com tamanho de pixel pior, mostra um processo de desmatamento mais avançado em relação aos efeitos de borda entre vegetação densa e áreas abertas por ser um produto derivado de imageamento mais recente.
E o Topodata? Ele também não é uma reamostragem do MDE SRTM?
Muitos sabem que o Projeto Topodata do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaicias) (http://www.dsr.inpe.br/topodata/index.php) utilizou os dados SRTM originalmente distribuídos com 3 segundos de arco (~90 m) para o Brasil e interpolaram o mesmo para 1 segundo de arco (~30 m) pelo método geoestatístico da krigagem. Mas existe uma falta de conhecimento do motivo para essa reamostragem dos dados.
As primeiras observações sobre o MDE SRTM efetuadas por Valeriano (2004) indicaram que este apresentava fortes restrições à extração de variáveis geomorfométricas (ex: declividade, orientação de vertente, curvatura vertical e horizontal, etc) na sua forma original. Uma maneira de contornar isso seria baseada em pré-processamento do MDE com refinamento de seu tamanho de pixel, o que tornaria a utilização do MDE para extração de variáveis geomorfométricas locais com desempenho relativamente favorecido. Valeriano e Rossetti (2010) apresentam um relatório detalhando o uso do interpolador geoestatístico krigagem como método de pré-processamento para a derivação de variáveis geomorfométricais locais.
Ou seja, o projeto Topodata usa a interpolação dos dados SRTM por krigagem como um pré-processamento para derivação de variáveis geomorfométricas locais. Inclusive, Valeriano e Rossetti (2010, pág. 69) deixam explícito que, o que eles chamam de refinamento do tamanho do pixel, pela reamostragem com interpolação por krigagem de 3 para 1 segundo de arco não há ganho de escala no dado.
No caso do “MDE PALSAR”, embora a ASF não especifique o método de interpolação utilizado na reamostragem do MDE SRTM de ~30m para 12,5 m, a finalidade disso é para a correção do terreno nas imagens PALSAR. Mais uma vez, não há nenhuma melhora de qualidade ou escala do dado MDE SRTM.
Por fim, a reamostragem dos dados SRTM para o Topodata e para ASF possuem finalidades diferentes do que melhorar a escala do produto. Então se apegar ao tamanho do pixel desses produtos e relacionar com escala de trabalho é desconhecimento ou má fé. O tamanho do pixel de 12,5 m do chamado “MDE PALSAR” nunca atenderá a escala de trabalho 1:25 mil por exemplo, já que é uma reamostragem do MDE SRTM.
Referências
VALERIANO, M. M. Modelo digital de elevação com dados SRTM disponíveis para a América do Sul. São José dos Campos: INPE, 2004. 72 p. (INPE-10550-RPQ/756). Disponível em: <http://urlib.net/rep/sid.inpe.br/sergio/2004/06.30.10.57>.
VALERIANO, M. M.; ROSSETTI, D. F. TOPODATA: seleção de coeficientes geoestatísticos para o refinamento unificado de dados SRTM. São José dos Campos: INPE, 2010. 74 p. IBI: <8JMKD3MGP7W/37FCGLP>. (sid.inpe.br/mtc-m19@80/2010/05.10.18.35-RPQ). Disponível em: <http://urlib.net/rep/8JMKD3MGP7W/37FCGLP>.
2 comentários
Não tem nada que eu possa dizer além de, Essa revisão e análise sobre os MDEs ficou muito boa! Parabéns pelo texto e obrigado por compartilhar! Gostei muito da ressalva “resolução espacial e tamanho de pixel são conceitos diferentes” Tem muita gente grande por ai ensinando isso errado!
Um forte abraço.
As imagens do AW3D30 são muito boas, mas percebi algumas pequenas “ilhas” com altimetria totalmente anômala, cerca de 100 m acima do entorno (folha S022W045). Já conferi e nesses locais nunca houve plantio de eucaliptais que poderiam justificar essa anomalia. O que seriam essas anomalias? É possível corrigi-las?